Durante semanas a fio, vi-o repetir
o mesmo ritual. Quando a porta se abria, logo pela manhã, entrava, benzia-se e
depositava um ramo de alecrim sobre a pedra tumular. Depois, como se não
houvesse tempo, ficava apenas a olhar longamente as escassas palavras inscritas
na lápide. Sempre em silêncio.
Sou coveiro. Dito assim de rompante,
o meu trabalho até é relativamente simples de explicar: escondo o que poucos
ousam ver. Abro e tapo buracos com cerca de 2 metros de profundidade, arrasto
pedras e observo a dor dos vivos que se procuram no meio dos mortos. Já lá vão
mais de 50 anos que ando por estas bandas, mas ainda me lembro do dia em que
pisei esta terra pela primeira vez, trazido pela mão do meu pai, ele mesmo um
coveiro. Pobre do homem veio tentar mostrar-me como isto era difícil, para que
eu me esforçasse mais na Escola. Nunca pude esquecer esse dia. Era Inverno e
chovia desalmadamente. O cheiro da terra molhada e o pavor da cova aberta foram
o suficiente para que começasse imediatamente a chorar. Então, o homem
condoeu-se e, apertando-me nas pontas dos dedos, voltou a levar-me para casa.
A verdade nua e crua é que os meus
pais nunca quiseram que eu enveredasse por estes caminhos. Ainda hoje não
compreendo muito bem o que me trouxe até aqui. Quem pode, afinal, entender as
estranhas malhas do destino? Sei apenas que nunca fui bom aluno. Na Escola, os
professores diziam-me:
“– Seu asno! Hás-de ser sempre como
o teu pai. Um desgraçado da morte” – e eu começava logo a chorar, porque não
queria ser um desgraçado da morte. Afinal, eu até sempre tive medo do mundo dos
mortos e o escuro causava-me os piores pesadelos. Contudo, que futuro poderia
haver para o filho do único coveiro da povoação? Quando fiquei só neste mundo,
por volta dos 16, é que compreendi o verdadeiro peso da herança. Cada vez mais,
seremos apenas o espelho do berço onde nascemos...
Antes de abrir a primeira sepultura,
emborquei uns bons cálices de aguardente. Queimar a alma é a melhor forma de escravizar
o corpo e anular quase todos os sentidos. Mas encontrar o que resta de um ser
humano condensado numa meia elástica abala a fé de qualquer um, mesmo bêbedo até
à ponta dos cabelos.
Ao longo dos anos, tive, é certo,
algumas oportunidades para abandonar este ofício miserável. Ganhei a lotaria duas
vezes, mas o dinheiro escorregou-me sempre das mãos com uma velocidade difícil
de explicar. Um homem sem ninguém via-se de repente rodeado por amigos de todos
os lados. E foi difícil não escapar à tentação de fazer cada vez mais e mais
amigos instantâneos. Até perder tudo e as mãos que me apertavam passarem
novamente a ignorar-me. O sabor da exclusão chama-se invisibilidade.
Hoje, logo pela manhã, ao ver aquele
menino entrar uma vez mais no cemitério, dei por mim a pensar nos motivos que o
trariam ali. Então, o mais silenciosamente que consegui, ganhei coragem e
aproximei-me. Chamava-se Pedro, como nos Evangelhos, tinha 10 anos e perdera
recentemente o irmão. Vinha visitá-lo na sua última morada e pedir à avó que
cuidasse dele.
“– E o alecrim? Para que deixas tu o
alecrim?”
“– O meu irmão – respondeu –
dizia-me que o alecrim era bom para a memória. Que até houve um tempo, há mais
de 2000 anos, em que os estudantes gregos o colocavam atrás das orelhas para
terem boas notas na Escola”.
“– Isso é muito engraçado… Mas para
que trazes tu o alecrim?” – insisti.
“– Para nunca esquecer o meu irmão”...
Ao ouvir aquele menino, não posso
deixar de sorrir. Afinal, as grandes perdas da vida são sempre acompanhadas de
um terrível período de esquecimento. Primeiro, há um fantasmagórico nevoeiro
que se apodera de nós e a imagem da pessoa amada começa rapidamente a
desvanecer-se. As suas palavras misturam-se, a voz afasta-se e até os objectos
parecem esvaziar-se de qualquer significado. As casas, então, transformam-se
num vazio arrepiante. E ao fim de algum tempo é que começamos a compreender o
esforço que é preciso fazer para não esquecer quase tudo. Sim, para não
esquecer quase tudo, como se pura e simplesmente nada tivesse existido. Como se
tudo não passasse de um sonho condenado a desaparecer.
Condenado a esquecer… O Homem foi
condenado a esquecer. Caso não o fizesse, desistiria rapidamente de quase tudo
na vida. Trata-se de um mecanismo de sobrevivência, que, no entanto, também implica
recordar. E é nessa equação, entre o que esquecemos (ou pensamos esquecer) e o
que recordamos, que está algures o que somos.
Agora, que se aproxima a entrada de
Novembro, muitos regressarão temporariamente ao terreno dos mortos. Passarão o
velho portão de ferro, alguns irão mesmo fazer o sinal da cruz antes de
refugiar-se na interminável saudade, nesse vazio imenso para o qual ainda não
inventaram palavras... Quase todos, porém, continuarão a mostrar-se incapazes
de compreender o drama dos vivos que por aqui trabalham.
Poucos o terão imaginado, mas cada
regresso ao mundo do eterno repouso é sempre um acto de resistência. Ao
depositar o ramo de alecrim, uma flor, acender uma vela, afastar o pó da imagem
que insiste em apagar-se ou simplesmente permanecer em silêncio estamos a
cuidar de nós, como se nos fosse dada a possibilidade de entrar no hospital
onde estamos internados e vigiar a própria doença. Em certo sentido, é uma
viagem ao futuro, onde nos reencontramos, despidos de todos os títulos e
cosméticas. Nesses instantes, apenas os símbolos parecem fazer ainda algum
sentido.
Símbolos
e utopias que nos fazem cada vez mais falta. O feriado de Novembro e, em
especial, o segundo dia consagrado à memória dos que já partiram também podem
ajudar-nos a pensar nisso… Ou não fosse a memória o pólen indispensável para
cada um pensar depois a sua própria história.
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)
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