Historiadores
e filósofos clássicos como Heródoto, Tucídides ou Cícero acreditaram que “a
História é a mestra da vida”. Alguns autores mais recentes, no entanto, têm
vindo a sustentar que a grande mestra da História (e da Humanidade) é a vida: enquanto
esta nos grava na pele as duras aprendizagens adquiridas à custa dos nossos
próprios erros, a primeira limita-se, em traços sumários, a mostrar-nos à
distância alguns percursos trilhados pelos nossos antepassados. Trata-se de uma
distinção que, embora simplista, talvez possa ajudar-nos a compreender a
crónica dificuldade que sentimos em aprender com os erros dos outros…
Vem este arrazoado a propósito de
uma reflexão que já algum tempo venho amadurecendo acerca das relações do Homem
com a História, em particular nestes tempos tão estranhos que continuamos a
viver. Estar atento aos sinais dos dias deveria ser uma tarefa de todos os
cidadãos e, em particular, daqueles que consagram a vida ao estudo desta “narrativa
científica”. Também por isso, não consigo aceitar (embora me pareça fácil
explicar) o “enterrar da cabeça na areia” que para aí vai grassando, mesmo
entre pessoas com responsabilidades histórico-culturais evidentes…
Por isso, no início deste terceiro parágrafo
lanço um desafio ao leitor: perca algum do seu tempo a observar as emissões do “Canal
História”. Aí, poderá deparar-se com várias “preciosidades esotéricas”, que
podem passar pela procura de seres extra-
-terrestres nas mais surpreendentes construções feitas pelo Homem, no âmbito das várias civilizações, ou até mesmo, só para dar outros exemplos bizarros, pela busca de vampiros, monstros lendários ou deuses que se fizeram Homens… Podia, afinal, falar de um “Canal História” que, de um modo regular, parece querer falar de tudo, menos de História. Naturalmente que, se um canal que deveria ser de referência é assim, nem vale a pena explorar o que acontece no caso dos generalistas… big brother’s (ressalve-
-se aqui, apesar de tudo, o meritório esforço da RTP2 do ponto de vista cultural, pese embora a espada de Dâmocles – leia-se, privatização – que paira sobre a sua cabeça…).
-terrestres nas mais surpreendentes construções feitas pelo Homem, no âmbito das várias civilizações, ou até mesmo, só para dar outros exemplos bizarros, pela busca de vampiros, monstros lendários ou deuses que se fizeram Homens… Podia, afinal, falar de um “Canal História” que, de um modo regular, parece querer falar de tudo, menos de História. Naturalmente que, se um canal que deveria ser de referência é assim, nem vale a pena explorar o que acontece no caso dos generalistas… big brother’s (ressalve-
-se aqui, apesar de tudo, o meritório esforço da RTP2 do ponto de vista cultural, pese embora a espada de Dâmocles – leia-se, privatização – que paira sobre a sua cabeça…).
Esta é, no entanto – como outros
articulistas já denunciaram –, a ponta do icebergue de uma tendência mais
vasta, que se reflecte, por exemplo, no modo como a História aparece
representada nos escaparates das grandes superfícies comerciais, com títulos
cada vez mais sensacionalistas e graficamente adornados, mas cujo conteúdo
está, afinal, para a História como um camelo para o rio Mondego… Depois, quanto
aos estudos sérios que ainda vão existindo (sim, porque neste país ainda se
produz alguma investigação séria e rigorosa), quando conseguem ser editados,
raramente chegam ao grande público por mais de uns fugazes instantes, logo
desaparecendo (inexplicavelmente?) dos expositores.
Serão estas grandes transformações
inconscientemente fabricadas pelos arautos do neo-liberalismo reinante neste
novo século, quais usurários que há muito venderam a alma ao Diabo, em nome do
seu único deus, o dinheiro? Tratar-se-á apenas de ignorância ou as razões serão
mais obscuras? Existirá uma estratégia deliberada de reconverter os cidadãos em
súbditos, o pensamento em obediência? Estaremos, afinal, a regressar
paulatinamente, sub-repticiamente, a um Estado totalitário, que se intromete
nos mais variados domínios da existência do indivíduo, regulando e vigiando
obsessivamente tudo o que somos, passando até mesmo pelo número de animais que
acolhemos dentro das casas onde vivemos? Aproveitar-se-ão os líderes do facto
de as multidões preferirem ser conduzidas, em detrimento de tomar as rédeas do
futuro nas próprias mãos? E poderão, efectivamente, tomá-las? O leitor saberá
encontrar a sua resposta. Mas, por favor, reflicta. E ouse discordar das minhas
respostas.
Respostas que, afinal, são cada vez
mais difíceis de encontrar, sobretudo para aqueles que se sacrificaram ao longo
de uma vida inteira ou para os jovens que desperdiçaram décadas a concluírem
percursos académicos, muitas vezes com distinção, e depois são convidados a
emigrar para o resto dos seus dias. Respostas que, de resto, não estão ao
alcance dos comuns mortais e cujo sentido, por mais que os nossos manhosos líderes
nos procurem inculcar, deixam sempre qualquer ser pensante com a pulga atrás da
orelha. Afinal, como recentemente me escrevia um amigo, este país já não é para
jovens, nem para idosos e, naturalmente, ainda menos para crianças. Este país é
para as pedras e, claro, para os arrivistas, os burocratas mangas-de-alpaca, os
corruptos, os farsantes, tantos engenheiros ou doutores “à la burla”, que
depois até lançam livros onde se apresentam como vítimas de um sistema que
ainda há bem pouco tempo ajudaram habilmente a forjar…
Atravessamos um período de indefinição,
laxismo, niilismo, anomia e, sobretudo, de total impunidade em relação aos protegidos
dos vários reis que para aí existem. Efectivamente, pensando bem, Portugal abandonou
a Monarquia em 1910, mas nunca deixou de ser um conjunto de pequenos reinos,
governados por vários caciques, cuja utilidade é tantas vezes justificada com o
pretexto de um carimbo ou uma simples rubrica. Olhamos à nossa volta e vemos
polícias condenados à prisão por terem colocado a vida em risco, perseguindo
criminosos; pais com medo de imporem regras aos filhos, pela pressão social de
algumas correntes psico-pedagógicas que transformam as crianças em deuses que
não podem ouvir um não ou sentir o traumatismo da frustração e muito menos de
um berro; professores ameaçados, agredidos, publicamente humilhados e, agora,
forçados a fazer provas cujo principal objectivo, além de representar um belo
encaixe financeiro para os cofres do Estado, passa por escamotear os dramáticos
números do desemprego. Afinal, deixarão de existir docentes desempregados, cinicamente
reconvertidos em candidatos a professores que não conseguiram obter aprovação
na tal prova generalista já do dia 18 de Dezembro, onde serão testadas as
competências esotéricas que para aí grassam… A verdade é que a qualidade do
sistema não constitui o grande objectivo deste tipo de medidas com carácter
eliminatório que, de resto, me fazem lembrar um pouco a trágica anedota do
paciente que se dirige repetidamente ao médico, queixando-se de dores no peito
e o clínico limita-se a mandar-lhe repetir exames atrás de exames, até que o
desgraçado lá acaba por morrer e, desse modo, contribui para a redução
estatística do número de doentes. Não é, afinal, o que tem sucedido em Portugal
ao longo dos últimos anos com esta obsessiva ideia de que tudo se resolve com
mais exames, em detrimento de atacar as verdadeiras causas? A este ritmo, não
tardará que deixem de existir desempregados, pobres, deficientes ou quaisquer
outro tipo de calamidades e então o reino dos céus terá, finalmente, chegado a
este cantinho do Mundo… Hoje, no meio de tanta miséria e de tanto cinismo, os
acenos que o poder nos faz são cada vez mais apetecíveis. Depois, resistir-lhes
implica uma integridade, que, reconheço, nem sempre se coaduna com a
necessidade de sobrevivência.
As linhas traçadas para o futuro
deste país, nomeadamente ao nível da Educação, são simplesmente desastrosas.
Veja-se, por exemplo, a preconizada privatização das Escolas (ninguém se iluda:
é o que está realmente a acontecer), que significará “apenas” a destruição de
um dos mais poderosos meios de mobilidade social ascendente construído neste
país no pós-25 de Abril e que permitiu a vários jovens (entre os quais me
incluo) continuar a estudar e ensaiar construir um futuro diferente das raízes
onde nasceu. Com todas estas medidas, no mundo dos privados, as elites poderão
continuar a perpetuar-se (dinheiro gera dinheiro, poder gera poder) e os
desgraçados do berço poderão igualmente perpetuar-se… na miséria. Estamos,
afinal, perante um profundo retrocesso civilizacional.
Os arautos que nos desgovernam
parecem efectivamente acreditar no efeito Mateus: “Porque ao que tem, dar-se-á
e terá em abundância; mas ao que não tem, ser-
-lhe-á tirado até mesmo o que tem”. Será que é apenas porque nunca conheceram o amargo de não ter? A verdade é que – perdoem-me o desabafo – ninguém deveria governar os outros sem conhecer o sabor da fome, sem sentir na pele a verdadeira dimensão da realidade.
-lhe-á tirado até mesmo o que tem”. Será que é apenas porque nunca conheceram o amargo de não ter? A verdade é que – perdoem-me o desabafo – ninguém deveria governar os outros sem conhecer o sabor da fome, sem sentir na pele a verdadeira dimensão da realidade.
Neste último parágrafo, debruçado entre
a vida e a História, opto pelas pontes que unam as duas construtoras da memória
e, consequentemente, de tudo o que somos. Recordando o meu próprio percurso
pessoal e daqueles que me são mais próximos, regresso à História-ciência e
História-docência a que um dia pensei, ingenuamente, poder consagrar a vida, em
regime de exclusividade. Regresso a todos os gigantes que continuam a
transportar-nos aos ombros. Regresso a esses gigantes, a tantos heróis do
silêncio do anonimato, que merecem, pelo menos, a nossa indignação. E deles recupero
uma lição que a História parece querer gritar-me – se a indiferença vencer, o
século XXI não será muito diferente do século que o antecedeu: 1914-1918 – I
Guerra Mundial; 1939-1945 – II Guerra Mundial, Holocausto… Será mesmo
necessário continuar a escrever, sabendo que apenas este último conflito terá
provocado mais de 50 milhões de mortos e a banalização do genocídio? Até quando
a História e a vida caminharão de costas voltadas dentro de cada um de nós?
Renato
Nunes