quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Entre a História e a vida


Historiadores e filósofos clássicos como Heródoto, Tucídides ou Cícero acreditaram que “a História é a mestra da vida”. Alguns autores mais recentes, no entanto, têm vindo a sustentar que a grande mestra da História (e da Humanidade) é a vida: enquanto esta nos grava na pele as duras aprendizagens adquiridas à custa dos nossos próprios erros, a primeira limita-se, em traços sumários, a mostrar-nos à distância alguns percursos trilhados pelos nossos antepassados. Trata-se de uma distinção que, embora simplista, talvez possa ajudar-nos a compreender a crónica dificuldade que sentimos em aprender com os erros dos outros…

            Vem este arrazoado a propósito de uma reflexão que já algum tempo venho amadurecendo acerca das relações do Homem com a História, em particular nestes tempos tão estranhos que continuamos a viver. Estar atento aos sinais dos dias deveria ser uma tarefa de todos os cidadãos e, em particular, daqueles que consagram a vida ao estudo desta “narrativa científica”. Também por isso, não consigo aceitar (embora me pareça fácil explicar) o “enterrar da cabeça na areia” que para aí vai grassando, mesmo entre pessoas com responsabilidades histórico-culturais evidentes…

             Por isso, no início deste terceiro parágrafo lanço um desafio ao leitor: perca algum do seu tempo a observar as emissões do “Canal História”. Aí, poderá deparar-se com várias “preciosidades esotéricas”, que podem passar pela procura de seres extra-
-terrestres nas mais surpreendentes construções feitas pelo Homem, no âmbito das várias civilizações, ou até mesmo, só para dar outros exemplos bizarros, pela busca de vampiros, monstros lendários ou deuses que se fizeram Homens… Podia, afinal, falar de um “Canal História” que, de um modo regular, parece querer falar de tudo, menos de História. Naturalmente que, se um canal que deveria ser de referência é assim, nem vale a pena explorar o que acontece no caso dos generalistas… big brother’s (ressalve-
-se aqui, apesar de tudo, o meritório esforço da RTP2 do ponto de vista cultural, pese embora a espada de Dâmocles – leia-se, privatização – que paira sobre a sua cabeça…).

            Esta é, no entanto – como outros articulistas já denunciaram –, a ponta do icebergue de uma tendência mais vasta, que se reflecte, por exemplo, no modo como a História aparece representada nos escaparates das grandes superfícies comerciais, com títulos cada vez mais sensacionalistas e graficamente adornados, mas cujo conteúdo está, afinal, para a História como um camelo para o rio Mondego… Depois, quanto aos estudos sérios que ainda vão existindo (sim, porque neste país ainda se produz alguma investigação séria e rigorosa), quando conseguem ser editados, raramente chegam ao grande público por mais de uns fugazes instantes, logo desaparecendo (inexplicavelmente?) dos expositores.

            Serão estas grandes transformações inconscientemente fabricadas pelos arautos do neo-liberalismo reinante neste novo século, quais usurários que há muito venderam a alma ao Diabo, em nome do seu único deus, o dinheiro? Tratar-se-á apenas de ignorância ou as razões serão mais obscuras? Existirá uma estratégia deliberada de reconverter os cidadãos em súbditos, o pensamento em obediência? Estaremos, afinal, a regressar paulatinamente, sub-repticiamente, a um Estado totalitário, que se intromete nos mais variados domínios da existência do indivíduo, regulando e vigiando obsessivamente tudo o que somos, passando até mesmo pelo número de animais que acolhemos dentro das casas onde vivemos? Aproveitar-se-ão os líderes do facto de as multidões preferirem ser conduzidas, em detrimento de tomar as rédeas do futuro nas próprias mãos? E poderão, efectivamente, tomá-las? O leitor saberá encontrar a sua resposta. Mas, por favor, reflicta. E ouse discordar das minhas respostas.

            Respostas que, afinal, são cada vez mais difíceis de encontrar, sobretudo para aqueles que se sacrificaram ao longo de uma vida inteira ou para os jovens que desperdiçaram décadas a concluírem percursos académicos, muitas vezes com distinção, e depois são convidados a emigrar para o resto dos seus dias. Respostas que, de resto, não estão ao alcance dos comuns mortais e cujo sentido, por mais que os nossos manhosos líderes nos procurem inculcar, deixam sempre qualquer ser pensante com a pulga atrás da orelha. Afinal, como recentemente me escrevia um amigo, este país já não é para jovens, nem para idosos e, naturalmente, ainda menos para crianças. Este país é para as pedras e, claro, para os arrivistas, os burocratas mangas-de-alpaca, os corruptos, os farsantes, tantos engenheiros ou doutores “à la burla”, que depois até lançam livros onde se apresentam como vítimas de um sistema que ainda há bem pouco tempo ajudaram habilmente a forjar…

             Atravessamos um período de indefinição, laxismo, niilismo, anomia e, sobretudo, de total impunidade em relação aos protegidos dos vários reis que para aí existem. Efectivamente, pensando bem, Portugal abandonou a Monarquia em 1910, mas nunca deixou de ser um conjunto de pequenos reinos, governados por vários caciques, cuja utilidade é tantas vezes justificada com o pretexto de um carimbo ou uma simples rubrica. Olhamos à nossa volta e vemos polícias condenados à prisão por terem colocado a vida em risco, perseguindo criminosos; pais com medo de imporem regras aos filhos, pela pressão social de algumas correntes psico-pedagógicas que transformam as crianças em deuses que não podem ouvir um não ou sentir o traumatismo da frustração e muito menos de um berro; professores ameaçados, agredidos, publicamente humilhados e, agora, forçados a fazer provas cujo principal objectivo, além de representar um belo encaixe financeiro para os cofres do Estado, passa por escamotear os dramáticos números do desemprego. Afinal, deixarão de existir docentes desempregados, cinicamente reconvertidos em candidatos a professores que não conseguiram obter aprovação na tal prova generalista já do dia 18 de Dezembro, onde serão testadas as competências esotéricas que para aí grassam… A verdade é que a qualidade do sistema não constitui o grande objectivo deste tipo de medidas com carácter eliminatório que, de resto, me fazem lembrar um pouco a trágica anedota do paciente que se dirige repetidamente ao médico, queixando-se de dores no peito e o clínico limita-se a mandar-lhe repetir exames atrás de exames, até que o desgraçado lá acaba por morrer e, desse modo, contribui para a redução estatística do número de doentes. Não é, afinal, o que tem sucedido em Portugal ao longo dos últimos anos com esta obsessiva ideia de que tudo se resolve com mais exames, em detrimento de atacar as verdadeiras causas? A este ritmo, não tardará que deixem de existir desempregados, pobres, deficientes ou quaisquer outro tipo de calamidades e então o reino dos céus terá, finalmente, chegado a este cantinho do Mundo… Hoje, no meio de tanta miséria e de tanto cinismo, os acenos que o poder nos faz são cada vez mais apetecíveis. Depois, resistir-lhes implica uma integridade, que, reconheço, nem sempre se coaduna com a necessidade de sobrevivência.

            As linhas traçadas para o futuro deste país, nomeadamente ao nível da Educação, são simplesmente desastrosas. Veja-se, por exemplo, a preconizada privatização das Escolas (ninguém se iluda: é o que está realmente a acontecer), que significará “apenas” a destruição de um dos mais poderosos meios de mobilidade social ascendente construído neste país no pós-25 de Abril e que permitiu a vários jovens (entre os quais me incluo) continuar a estudar e ensaiar construir um futuro diferente das raízes onde nasceu. Com todas estas medidas, no mundo dos privados, as elites poderão continuar a perpetuar-se (dinheiro gera dinheiro, poder gera poder) e os desgraçados do berço poderão igualmente perpetuar-se… na miséria. Estamos, afinal, perante um profundo retrocesso civilizacional.

            Os arautos que nos desgovernam parecem efectivamente acreditar no efeito Mateus: “Porque ao que tem, dar-se-á e terá em abundância; mas ao que não tem, ser-
-lhe-á tirado até mesmo o que tem”. Será que é apenas porque nunca conheceram o amargo de não ter? A verdade é que – perdoem-me o desabafo – ninguém deveria governar os outros sem conhecer o sabor da fome, sem sentir na pele a verdadeira dimensão da realidade.

            Neste último parágrafo, debruçado entre a vida e a História, opto pelas pontes que unam as duas construtoras da memória e, consequentemente, de tudo o que somos. Recordando o meu próprio percurso pessoal e daqueles que me são mais próximos, regresso à História-ciência e História-docência a que um dia pensei, ingenuamente, poder consagrar a vida, em regime de exclusividade. Regresso a todos os gigantes que continuam a transportar-nos aos ombros. Regresso a esses gigantes, a tantos heróis do silêncio do anonimato, que merecem, pelo menos, a nossa indignação. E deles recupero uma lição que a História parece querer gritar-me – se a indiferença vencer, o século XXI não será muito diferente do século que o antecedeu: 1914-1918 – I Guerra Mundial; 1939-1945 – II Guerra Mundial, Holocausto… Será mesmo necessário continuar a escrever, sabendo que apenas este último conflito terá provocado mais de 50 milhões de mortos e a banalização do genocídio? Até quando a História e a vida caminharão de costas voltadas dentro de cada um de nós?

Renato Nunes