Múltiplas instituições públicas e privadas, com fins políticos, culturais, académicos ou simplesmente mercantis, ao longo deste ano de 2010, têm desenvolvido variadas iniciativas que visam evocar o centenário da República. Proliferam, por este país fora, comunicações e congressos, exposições e publicações de livros alusivos ao tema, representações de história viva, programas de rádio, séries de ficção televisiva e documentários, e até competições desportivas, festas, banquetes e bailes são abençoados com o nome da República.
Creio bem que tudo isto não é censurável. E será até aceitável e talvez recomendável. No entanto, no meio de tanto ruído eufórico e, porventura, de alguma encenação «barroca», receio bem que se perca de vista dois assuntos essenciais relacionados com o passado e o futuro da República.
Primeiro, o chamado período da propaganda republicana (anos 40 do século XIX até 1910) encontra-se, de facto, muito bem estudado por historiadores como Fernando Catroga e Amadeu Carvalho Homem, para citar apenas dois que pertencem à Universidade de Coimbra. Contudo, receio que, no meio deste fogo-fátuo e de tanta (e, em vários casos, duvidosa) publicação de títulos, continuem por fazer e editar obras de investigação historiográfica de grande fôlego e verdadeiramente inovadoras sobre o regime republicano balizado entre a revolução de 5 de Outubro de 1910 e o golpe militar de 28 de Maio de 1926. A prometida síntese monumental sobre o tema (em que, aliás, tive a honra de colaborar com os verbetes «Fátima» e «António Machado Santos») – o Dicionário de História da Primeira República e do Republicanismo — parece ainda estar a ser lavrada e tarda em ver a luz do dia. E julgo serem demasiados os temas e as questões nas áreas da história política, da história religiosa, mas também nos domínios da história da educação e da história económico-social a necessitarem de ser desbravados e mais bem esclarecidos a partir de uma sistemática inventariação e interpretação de novas e velhas fontes.
Daí decorre que alguns historiadores e, o que é lamentável, os opinantes profissionais mais mediáticos da nossa ágora se percam em exercícios de reflexão demasiado especulativa e desactualizada, que, em muitos casos, enfermam de preconceitos e juízos de valor político-ideológicos ou até de outras razões mais crípticas de carácter psicanalítico ou mercantil. Desconfio, por isso, que tais atitudes esvaziem a sempre problemática análise histórica da sua necessária objectividade e não contribuam para um melhor esclarecimento do assunto tratado. Pior: suponho mesmo que essas intervenções possam até semear a confusão nos espíritos de muitos cidadãos. Por outro lado, importa ainda enfatizar que se perdeu também uma oportunidade irrepetível para criar um verdadeiro «Museu da República» (recordo que hoje apenas temos o Museu da Presidência da República, que é, afinal, um museu com desígnios diferentes): um espaço cívico, cultural, académico e didáctico, preparado para traçar, de forma pedagógica e historiográfica (portanto, não redutoramente apologética), os trajectos da(s) nossa(s) República(s) através do recurso às suas prolíficas fontes, onde, aliás, abunda uma fascinante documentação imagética.
Em segundo lugar, será que caminhamos para o fim da República democrática e social no preciso momento em que discutimos apaixonadamente — e esterilmente (e anacronicamente) — se a República procedente da revolução do 25 de Abril de 1974 é herdeira directa da Primeira República oriunda da revolução de 5 de Outubro de 1910? Ou se a Primeira República foi demoliberal ou ditatorial, tolerante ou intransigente, laica ou jacobina, socialista democrática ou burguesa e anti-sindicalista, comedida ou esbanjadora do erário público?
Certo é que, quando soçobrou a Monarquia Constitucional, sobretudo as massas urbanas devotaram-se ao messiânico ideário republicano; quando tombou a Primeira República, muitos foram os que acreditaram (ou foram coagidos a confiar) nos milagres do «fascismo português»; quando o Estado Novo naufragou, o povo fiou-se nas panaceias socialista democrática, social-democrata, comunista ou democrata-cristã. Mas hoje parece já nada restar dessas ideologias. Ou melhor, no meio deste aterrador vazio ideológico, resta-nos inculcar a ladainha inconsequente dos economistas neoliberais anafados e fartamente reformados, que pelo menos durante os últimos 30 anos dominaram as instituições estatais, empresariais e financeiras nacionais, e só agora, «no fim do jogo» é que «previram» o colapso financeiro do Estado (!). Resta-nos, portanto, aceitar brutais planos de austeridade que nos conduzem, inexoravelmente, à recessão, ao desemprego e à miséria. E, enquanto Portugal sucumbe paulatinamente, resta-nos bradar mais uma vez o velho slogan socialista soarista «A Europa Connosco» — esperando talvez que os inimputáveis Durão Barroso, Angela Merkel, Jean-Claude Trichet e Vítor Constâncio sejam por uma vez tocados pela delicodoce fraternidade europeia e, a bem do povo, extirpem os pecados veniais cometidos no país, nos últimos anos.
5 de Outubro de 2010
Luís Filipe Torgal
Texto publicado no Jornal Folha do Centro e no blogue de Paulo Guinote "A educação do meu umbigo"